OLHARES PARA 2030

Protagonismo do consumidor

Os acelerados movimentos globais como a intensificação do uso de plataformas digitais nas relações de consumo e para acesso à informação. A co-criação de produtos e serviços, a valorização de alimentos seguros e com rastreabilidade, o crescimento constante de mercados emergentes e da chamada economia colaborativa, entre outros, denotam o protagonismo do consumidor como influenciador dos processos decisórios produtivos.
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Celso Luiz Moretti

Celso Luiz Moretti

A pesquisa pública como fonte geradora de valor para a agricultura brasileira

Alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

ODS 2 - Fome zero e agricultura sustentável ODS 9 - Indústria, inovação e infraestrutura

A economia brasileira tem uma locomotiva chamada agropecuária. Uma locomotiva que vem, ano a ano, demonstrando para toda a sociedade brasileira a força que vem do campo. A safra 2016/2017 de grãos foi de quase 240 milhões de toneladas. Um novo recorde. E temos feito isso de forma sustentável usando apenas 9% de nosso território. Outros 21%, aproximadamente, são de pastagens nativas e plantadas. Protegemos ou preservamos a vegetação em outros 67% do território brasileiro.

Essa trajetória de sucesso foi construída tendo como base uma política científica sólida que promoveu a geração de conhecimentos, de ciência e de tecnologia agropecuárias. O Brasil, que até o início da década de 1970 era considerado como uma nação que vivia em situação de insegurança alimentar, é hoje um dos maiores produtores mundiais de alimentos e pode, efetivamente, contribuir para a erradicação da fome no mundo até 2030. Essa trajetória não tem paralelo em nenhuma outra parte do mundo.

Há 40, 50 anos não havia modelo a copiar. A tecnologia disponível era aplicada ao mundo temperado, basicamente desenvolvida por países do hemisfério norte. O Brasil precisou então desenvolver sua própria tecnologia agropecuária. A pesquisa pública teve papel estratégico nessa missão. O setor abriu caminho para uma iniciativa privada ágil, pujante e empreendedora. Grande parte do sucesso conseguido pode ser dividido em três pilares básicos: o desenvolvimento de uma plataforma sustentável de produção; a transformação de solos ácidos e pobres em solos férteis; e a tropicalização de cultivos e o melhoramento genético de raças de animais.

Foram as tecnologias de produção agropecuária desenvolvidas e adaptadas aos trópicos que contribuíram para a incorporação dos cerrados, uma área de aproximadamente 200 milhões de hectares, à matriz produtiva brasileira. A tecnologia de plantio direto, a construção da fertilidade dos solos, com correção da acidez e eliminação da toxidez de alumínio, e a fixação biológica de nitrogênio (FBN) estão na base da conquista dos cerrados como celeiro da produção brasileira e mundial de alimentos. Na safra 2016/2017, estima-se que a FBN tenha trazido uma economia de US$ 20 bilhões para o Brasil somente na cadeia produtiva da soja. Finalmente, fechando esse tripé, mas não menos importante, está a adaptação e o melhoramento de cultivos e animais aos trópicos por meio de tecnologias inéditas adaptadas a essa região do planeta.

É essa adaptação que tem possibilitado o desenvolvimento de culturas como a soja e o trigo, tradicionalmente de clima temperado, nas regiões tropicais do globo. Os grãos são hoje cultivados em estados como Roraima, Pará, Maranhão e Piauí. De maneira similar, a produção de proteína animal também se beneficiou do mesmo trabalho de adaptação às condições de clima tropical. Melhoramento genético e técnicas de manejo propiciaram o aumento da produtividade de gado bovino de raças zebuínas.

Os investimentos públicos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), o treinamento maciço de pesquisadores nas melhores universidades do mundo e a parceria com o setor privado, dentre outros fatores conjunturais, fizeram do Brasil uma potência mundial na produção de alimentos. Para que o país siga sendo um dos principais players globais, as instituições públicas de PD&I e seus parceiros privados precisarão estar conectados e atentos às rápidas mudanças vivenciadas pela agropecuária.

Estima-se que em 2030 a população mundial chegue a 8,5 bilhões de pessoas e que mais de 50% estejam na Ásia. A maior parte da população do globo (ao redor de 60%) pertencerá à classe média. Em adição e em conexão às questões demográficas, outras grandes tendências científicas, tecnológicas, socioeconômicas e mercadológicas contribuirão para um conjunto de transformações que devem moldar o futuro da agropecuária.    Entender como essas e outras questões impactarão a produção e a comercialização de alimentos é vital na definição de estratégias de pesquisa, desenvolvimento e inovação agropecuária.

A agricultura brasileira continuará vivenciando mudanças espaciais profundas. O uso do monitoramento, da gestão e da inteligência territorial terá papel preponderante na compreensão dessas mudanças. Os estudos focando a diversidade de sistemas pecuários nacionais e sua ocupação territorial, a identificação de sistemas mais eficientes, sustentáveis e com mínimo de aplicação de insumos externos, deverá ser priorizado.

No âmbito da convergência tecnológica, a transformação digital terá papel de destaque. A agricultura de precisão e a automação com o uso de drones no monitoramento de lavouras e rebanhos e o emprego de equipamentos como máquinas e implementos autônomos terão crescimento acelerado. A utilização de sensores de irrigação, adubação e controle de pragas e doenças com tecnologia “sítio específico” e a interconexão digital entre máquinas (internet das coisas – IoT) seguirão tendo uso destacado e cada vez mais significativo. Cada vez mais se buscará o compartilhamento de informações e de ativos digitais, públicos e privados, o que possibilitará a criação e a exploração de novos modelos de negócios. São esses negócios digitais que têm propiciado o surgimento de número crescente de startups focadas no agronegócio, as chamadas agritechs, setor que hoje reúne mais da metade de todas as startups brasileiras. É também a transformação digital que possibilitará o crescimento do uso da realidade aumentada, um negócio que movimentará US$ 80 bilhões em todo o mundo até 2025. De maneira crescente, pesquisadores, produtores e técnicos envolvidos no setor necessitarão da capacidade de análise de grandes massas de dados (Big Data) que serão utilizados para suportar a tomada de decisão.

Ainda no campo da convergência tecnológica, a biotecnologia continuará em evidência. A transgenia seguirá vivendo seu ocaso, cedendo espaço cada vez maior para a edição genômica, sobretudo com emprego da tecnologia conhecida como Crispr-Cas 9. A técnica promete revolucionar, dentre outros desafios, a adaptação de cultivos a regiões áridas e a resistência a pragas e doenças.

A pesquisa pública terá papel relevante na gestão de riscos agropecuários. Ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) voltadas para o aprimoramento dos modelos de zoneamento agrícola de risco climático (Zarc) serão fomentadas, visando ao desenvolvimento de sistemas inovadores com integração de aspectos climáticos, tecnológicos, socioeconômicos, ambientais e de mercado. O fluxo intenso de cargas e pessoas e a possibilidade de abertura de novos mercados, sobretudo aqueles localizados em países emergentes, demandarão ações voltadas para a integração de sistemas de informação e bases de dados de risco climático com informações de mercado, recursos naturais, de sanidade (animal e vegetal) e de logística, com vistas à gestão integrada de riscos na agricultura.

As mudanças de clima também ocuparão espaço importante na agenda de PD&I das instituições públicas. A agropecuária seguirá contribuindo de forma significativa para que o Brasil cumpra seus compromissos de redução de emissão de gases de efeito estufa e atinja as metas estabelecidas nos diversos acordos dos quais o país faz parte. Políticas públicas como o Plano Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC) seguirão contando com contribuições de ações coordenadas centradas na integração lavoura, pecuária e floresta (iLPF), plantio direto, controle biológico, fixação biológica de nitrogênio e no manejo racional de resíduos da produção animal, dentre outros. Estudos voltados para análises das vulnerabilidades dos sistemas produtivos aos riscos e impactos da mudança do clima serão fomentados.

A intensificação sustentável dos sistemas de produção terá papel de destaque na agenda futura das instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento. O Brasil conseguiu avanços substanciais ao longo dos últimos anos no uso de tecnologias sustentáveis e de integração de sistemas. O país desenvolveu nos últimos 30 anos um modelo de produção sustentável que integra, numa mesma área, a produção agrícola, a pecuária e a florestal. A integração lavoura, pecuária e floresta, ou iLPF como é normalmente conhecida no meio rural, já ocupa quase 12 milhões de hectares em todo território nacional e vem se expandindo. Dados da pesquisa demonstram que é possível produzir, de forma sustentável e competitiva, grãos, pasto, madeira e carne numa mesma área, de forma sucessiva. Adicionalmente, a agenda de PD&I focará ações voltadas à ampliação da participação dos biocombustíveis e outras fontes de energia renováveis na matriz energética brasileira, em suporte a iniciativas como o programa RenovaBio. A dependência crítica da importação de nutrientes para a agricultura brasileira deverá nortear ações com foco na busca por fontes alternativas de condicionadores de solos e fertilizantes bem como a expansão do uso da FBN para um maior número de espécies vegetais. A FBN foi crucial no desenvolvimento da cadeia produtiva da soja e poderá ter o mesmo papel para outras como milho, trigo e cana-de-açúcar.

A agregação de valor nas cadeias produtivas será outro tema na agenda de PD&I das instituições públicas e privadas. O desenvolvimento de estratégias para a redução do desperdício e melhoria de qualidade e segurança dos alimentos contribuirá para os processos de certificação ambiental, social e de rastreabilidade nas diferentes cadeias. A agenda deverá ainda buscar o desenvolvimento de insumos e ingredientes agropecuários de alta eficiência e de liberação prolongada como nanofertiilizantes, nanofármacos e aditivos que possibilitem a maior eficiência na sua funcionalidade.

A agenda de PD&I das instituições públicas e privadas deverá priorizar a inovação aberta. A estruturação de plataformas digitais, o desenvolvimento conjunto de soluções e o compartilhamento de dados, estruturas e profissionais será crescente. Iniciativas como as Unidades Mistas de Pesquisa (Umips), parceria entre a Embrapa e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), terão cada vez mais espaço na construção conjunta de agendas e de busca de soluções.

Com a crescente urbanização mundial no horizonte de 2030, as instituições de PD&I terão que ter a habilidade de construir uma narrativa que demonstre, de forma clara e inequívoca, seu papel e relevância nas sociedades ao redor do mundo.  O público urbano demandará saber como o seu dia a dia está sendo influenciado, impactado e mudado pelas entregas feitas pelas instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento agropecuário bem como qual a relação benefício/custo de sua existência. No caso da Embrapa1, tal relação para a sociedade brasileira tem sido rigorosamente analisada desde a sua primeira década de existência e de modo anual nos últimos 19 anos (1998–2016). Nas últimas duas décadas, para cada R$ 1,00 investido na Embrapa, a estatal tem retornado à sociedade brasileira de R$ 7,50 a R$ 14,80, com média de 11:1.

Em síntese, as instituições de pesquisa e desenvolvimento agropecuário seguirão tendo papel relevante no horizonte de 2030 no desenvolvimento de um dos setores mais estratégicos, pujantes e competitivos da economia brasileira. Pelo seu papel estratégico no desenvolvimento do país, os investimentos em P&D agropecuário deverão ser crescentes. A Embrapa e seus parceiros terão pela frente o desafio de continuar a contribuir, de forma relevante e efetiva, com o desenvolvimento mais equânime do Brasil, no combate à fome, na erradicação da pobreza rural, na geração de emprego e renda e na melhoria da competitividade e sustentabilidade da agropecuária brasileira. Será dessa forma que a instituição continuará a contribuir para a geração de valor público, para o estabelecimento de uma sociedade mais justa e para a melhoria da qualidade de vida, presente e futura, da população brasileira

Referência

[1] Martha Jr., G.; Alves, E.  The Role and Impact of Public Research and Technology Transfer in Brazilian Agriculture. In: Kalaitzandonakes et al.  (2017). From Agriscience to Agribusiness: Theories, Policies and Practices in Technology Transfer and Commercialization (Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-67958-7_21).

Celso Luiz Moretti

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

Celso Moretti é engenheiro agrônomo, mestre e doutor em produção vegetal e especialista em engenharia de produção com ênfase em gestão empresarial. Pesquisador da Embrapa há 23 anos, dedicou os últimos oito anos à gestão pública. Como gestor foi chefe geral do Centro Nacional de Pesquisa de Hortaliças (Brasília, DF) entre 2008 e 2013 e chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (DPD) da Embrapa entre 2013 e 2017.

Possui treinamento gerencial na Fundação Dom Cabral (2009) e na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP, 2017) no Programa Internacional de Desenvolvimento de Executivos da Administração Pública Federal. É alumni (2016) da Harvard School of Government, Harvard University, Cambridge, EUA.

Foi bolsista em produtividade científica do CNPq de 1999 a 2017. É professor convidado da University of Florida (EUA) desde 2006, professor honorário da Universidad Nacional del Santa (Peru) desde 2010 e foi orientador de estudantes de mestrado e doutorado da Universidade de Brasília (UnB) de 2003 a 2017. É autor de capítulos de livros, editor de livros técnicos e autor e coautor de trabalhos técnico-científicos em periódicos nacionais e internacionais. Possui ampla experiência internacional tendo apresentado trabalhos científicos, atuado como consultor e proferido palestras, seminários e conferências em 22 países. Foi consultor do PNUD para a China, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Ministério da Agricultura da Colômbia. É atualmente Diretor Executivo de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa.